quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Rascunhos de Lucidez e Loucura


Estou na torrente e habito jangada que eu mesma construí com os ossos desenterrados de minhas ancestrais. Para mantê-los lado a lado, tramei corda com os esquecidos fios de seus cabelos sempre vivos. Dias atrás, quando me lancei ao mar, esperava viver a deriva de mim mesma. Cuidar-me na quietude do imenso amor azul. E isto se fez possível, ao menos, por todo um dia e uma noite. Novo raiar de sol, e avistei-me rodeada de pequenas ilhas. Em cada uma delas alguém da minha gente a me suplicar socorro. Berros e berreiros ecoando pela imensidão. Desde então, tenho aportado numa e noutra como quem se faz elo entre as mentes confusas e os corações magoados. Chove sem cessar. Chovo quase todo tempo. E tenho inventado para mim o direito de, em certos momentos, fechar meus olhos para não mais ver as ilhas em desespero. E então, mergulhada na noite que a qualquer tempo posso ser, descanso a angústia para voltar a vê-las com qualquer sabedoria. Alguma que seja. Nestes raros instantes de silêncio que antecedem a labuta de remar em mar bravio, danço a lembrança de meu corpo amando o corpo de outra mulher. Repouso na memória latente sabendo da urgência de resguardar o templo que sou. Difícil conceber troca energética tão intensa em meio ao caos do rito de realinhamento de minha guiança. Cuidado comigo. Cuidado com ela. O celibato é também um amor possível. Lua no alto desejando-se inteira, meu peito cá embaixo dilacerado: o mundo me dói e a loucura me ronda. Preciso estar lúcida para cuidar do meu povo. Preciso estar louca para cuidar de mim.

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