segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

...ontem.

Estive com o amor:
E ele era moço bonito.

Pranto


Há tanta gente dentro de mim. Sou um povoado para além do agora. E tem sido difícil lidar com as súplicas do povo que me habita. Meu povo chora uma dor antiga e me pede socorro. Povo preto. Povo índio. Povo caboco. Nunca foram tantos os berros de meus ancestrais percorrendo meu sangue, meus ossos, meus órgãos. Sinto o medo de não encontrar caminho para ser colo da minha gente. A cidade me esmaga e me sinto cansada. O pranto que não se faz choro, deixo escoar pelo corpo. Danço a tristeza daqueles que agonizam no sonho de que eu os escute e os honre com minha existência. Tenho medo. Mas tenho mais fé do que medo. Sou filha de Nanã e terreiro de Eguns.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Rascunhos de Lucidez e Loucura


Estou na torrente e habito jangada que eu mesma construí com os ossos desenterrados de minhas ancestrais. Para mantê-los lado a lado, tramei corda com os esquecidos fios de seus cabelos sempre vivos. Dias atrás, quando me lancei ao mar, esperava viver a deriva de mim mesma. Cuidar-me na quietude do imenso amor azul. E isto se fez possível, ao menos, por todo um dia e uma noite. Novo raiar de sol, e avistei-me rodeada de pequenas ilhas. Em cada uma delas alguém da minha gente a me suplicar socorro. Berros e berreiros ecoando pela imensidão. Desde então, tenho aportado numa e noutra como quem se faz elo entre as mentes confusas e os corações magoados. Chove sem cessar. Chovo quase todo tempo. E tenho inventado para mim o direito de, em certos momentos, fechar meus olhos para não mais ver as ilhas em desespero. E então, mergulhada na noite que a qualquer tempo posso ser, descanso a angústia para voltar a vê-las com qualquer sabedoria. Alguma que seja. Nestes raros instantes de silêncio que antecedem a labuta de remar em mar bravio, danço a lembrança de meu corpo amando o corpo de outra mulher. Repouso na memória latente sabendo da urgência de resguardar o templo que sou. Difícil conceber troca energética tão intensa em meio ao caos do rito de realinhamento de minha guiança. Cuidado comigo. Cuidado com ela. O celibato é também um amor possível. Lua no alto desejando-se inteira, meu peito cá embaixo dilacerado: o mundo me dói e a loucura me ronda. Preciso estar lúcida para cuidar do meu povo. Preciso estar louca para cuidar de mim.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

A História das Mulheres Nascentes

Dormi sob céu estrelado e som de batuque. Amanheci cá dentro da tenda. Noite inteira, as formigas, que costumam abocanhar quem delas se aproxima, trouxeram-me adormecida e tão delicadas que se quer senti presença. Aqui dentro, a velha senhora me conta que as vozes de nossas ancestrais ecoam por baixo da terra e que assim sabem as formigas momento de trazer as mulheres para a tenda vermelha. Há muitas de nós nesta oca agora. Sonho saber quem são as mulheres que, resguardadas comigo, sangram e limpam os ventres do mundo no tempo que se inventa presente. Antes mesmo de minha chegada, as comportas estavam abertas. Tenho meu choro solto. E verto dois rios: um vermelho embotado feito cor das rosas cheirosas; outro límpido, translúcido como a força de minha guiança. Aqui terei tempo de pensar no que meu corpo anda me contando enquanto danço. Em próximos dias, farei oferendas diárias às plantas. E, no intervalo entre elas, entoarei cânticos de amor ao meu ventre. Levo em mim a morada primeira de meu povo. Sou guardiã da oca ancestral. Mas não sou só. Sou com elas. Estou entre iguais. Qualquer das gentes que eu aviste nesta egrégora sabe da poderosa loucura que é sangrar entre as pernas. São estas as loucas do riacho: as mulheres nascentes. Somos confraria mesmo quando não lembramos ser. Com elas estou. Daqui, sigo a sangrar.