Não queira que eu vire cansaço nos dias da
mulher que amo. Talvez eu seja mesmo ser que demande paciência. Talvez
todo ser o seja. Não há qualquer problema no descompasso dos encontros. Equilíbrio
é dança com ares de improviso ao som do mesmo disco. Me assusta é ser enfado
nos dias dela. Livrai-me do fardo de ser peso e do peso de ser piso. Deixa-me
ser terra. Não deixeis que eu me deixe ser suportável apenas. Antes disto,
morra ao acaso, sem me dar respostas quaisquer. Já não sou capaz de vê-la
refutar o dito que ainda não tenha dito. Meu pensamento se dá em círculos. É
lento o meu tempo. E mundo pede pressa. Mais que meu silêncio, me dói acreditar
nos pedidos de que eu não me permita calada e ser tomada de assalto pela
impaciência de quem pensa que se dispõe a minha ladainha. Dai-me sabedoria para
que eu não mais refaça o nó atado na garganta. Impor-me não é possibilidade. E
se anular-me se fizer um risco, desapareça, amor, sem deixar qualquer espécie
de pistas. Salve-se de mim e daquilo que não sei de ti.
segunda-feira, 19 de junho de 2017
sábado, 29 de abril de 2017
Palavras me escapam. Resta corpo reverberando gozo e cuidado. Meu olhar sob feitiço e sobro sem entender o que tenho vivido: inteiramente entregue à urgência e mansidão desse querer. Me lambuzo da paixão que somos para o mundo agora. Mergulho, transbordo e encharcada respingo naqueles que resvalo pelo caminho.
...amor é milagre.
terça-feira, 4 de abril de 2017
A Ciranda das Mulheres Sábias
Havia mulheres por todas as
partes, advindas de toda espécie de nascentes. Chegaram convocadas pelo desejo confluente
de nossas águas mais profundas. Ainda que não soubessem ser isso que estavam por
fazer de si mesmas, chegaram.
Sendo filha da velha senhora,
tenho como caminho e missão, desatinar movimento nas águas paradas. Revirar a
lama. É que carrego força de lida com todo tipo de poça.
Entregue ao serviço de cuidar-nos:
no silêncio, maior parte do tempo; por vezes, na fala que se teimava calma. Noite
de estio, a prosa de leito largo tardou para romper em foz. Náuseas no fluir
das águas. Mas também um colo quente e sereno. Vida a fluir, truncar, voltar a
fluir e voltar a truncar.
No tempo dos corpos, cada uma
daquelas que se aproximou do pequeno lago ao centro da ciranda das mulheres
sábias depositou em sua margem plantas e tinturas de poder. O barro da velha
tornado moringa sagrada ecoou seu canto de fundo de rio ou de mar. Cada uma das
mulheres mergulhou até onde seu fôlego pôde lhe carregar. A fundura que, para
uma de nós, era água rasa, para outra, era precipício e escuridão. Juntas. E
sós.
Uma, que é árvore de raízes
profundas, no encontro com o abismo de suas águas mais turvas, receou não
reconhecer em noite de lua nova o caminho de volta. Voltou quando desistiu de
enxergar e confiou nos pés sabedores da estrada.
quarta-feira, 15 de março de 2017
"de hoje a oito"
Dia
dela, corpo ferve; casa aprisiona e sou desejo de rua imunda de gente. Toda
quarta-vermelha sou fome desembestada: boca sedenta. Tenho pelos eriçados e mão
sinuosa acariciando vulva macia e quente. Semana rasgada ao meio, só resta
sentido em me deixar guiar pelos ventos de Oyá. Bicos de peitos. Olhos
vidrados. E assim, noite-dia, corre solto riacho que sou entre pernas. É que quarta-feira
bate forte feito baque de trovão em mim. Nela, viro assombro: vejo raio e vou me
banhar de chuva no mar. Dançar na tempestade. Dançar a tempestade. Ser a tempestade. Fechar
os olhos e ser poder: ser prazer. Gozar junto e
deixar ser sem medo qualquer.
(...)
Se assim não for, enlouqueço.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017
Pranto
Há tanta gente dentro de mim. Sou um povoado
para além do agora. E tem sido difícil lidar com as súplicas do povo que me
habita. Meu povo chora uma dor antiga e me pede socorro. Povo preto. Povo
índio. Povo caboco. Nunca foram tantos os berros de meus ancestrais percorrendo
meu sangue, meus ossos, meus órgãos. Sinto o medo de não encontrar caminho para
ser colo da minha gente. A cidade me esmaga e me sinto cansada. O pranto que
não se faz choro, deixo escoar pelo corpo. Danço a tristeza daqueles que
agonizam no sonho de que eu os escute e os honre com minha existência. Tenho medo. Mas tenho
mais fé do que medo. Sou filha de Nanã e terreiro de Eguns.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017
Rascunhos de Lucidez e Loucura
Estou na torrente e habito jangada que eu mesma construí com os ossos desenterrados de minhas ancestrais. Para mantê-los lado a lado, tramei corda com os esquecidos fios de seus cabelos sempre vivos. Dias atrás, quando me lancei ao mar, esperava viver a deriva de mim mesma. Cuidar-me na quietude do imenso amor azul. E isto se fez possível, ao menos, por todo um dia e uma noite. Novo raiar de sol, e avistei-me rodeada de pequenas ilhas. Em cada uma delas alguém da minha gente a me suplicar socorro. Berros e berreiros ecoando pela imensidão. Desde então, tenho aportado numa e noutra como quem se faz elo entre as mentes confusas e os corações magoados. Chove sem cessar. Chovo quase todo tempo. E tenho inventado para mim o direito de, em certos momentos, fechar meus olhos para não mais ver as ilhas em desespero. E então, mergulhada na noite que a qualquer tempo posso ser, descanso a angústia para voltar a vê-las com qualquer sabedoria. Alguma que seja. Nestes raros instantes de silêncio que antecedem a labuta de remar em mar bravio, danço a lembrança de meu corpo amando o corpo de outra mulher. Repouso na memória latente sabendo da urgência de resguardar o templo que sou. Difícil conceber troca energética tão intensa em meio ao caos do rito de realinhamento de minha guiança. Cuidado comigo. Cuidado com ela. O celibato é também um amor possível. Lua no alto desejando-se inteira, meu peito cá embaixo dilacerado: o mundo me dói e a loucura me ronda. Preciso estar lúcida para cuidar do meu povo. Preciso estar louca para cuidar de mim.
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017
A História das Mulheres Nascentes
Dormi
sob céu estrelado e som de batuque. Amanheci cá dentro da tenda. Noite inteira,
as formigas, que costumam abocanhar quem delas se aproxima, trouxeram-me adormecida
e tão delicadas que se quer senti presença. Aqui dentro, a velha senhora me
conta que as vozes de nossas ancestrais ecoam por baixo da terra e que assim sabem
as formigas momento de trazer as mulheres para a tenda vermelha. Há muitas de
nós nesta oca agora. Sonho saber quem são as mulheres que, resguardadas comigo,
sangram e limpam os ventres do mundo no tempo que se inventa presente. Antes
mesmo de minha chegada, as comportas estavam abertas. Tenho meu choro solto. E
verto dois rios: um vermelho embotado feito cor das rosas cheirosas; outro
límpido, translúcido como a força de minha guiança. Aqui terei tempo de pensar
no que meu corpo anda me contando enquanto danço. Em próximos dias, farei
oferendas diárias às plantas. E, no intervalo entre elas, entoarei cânticos de
amor ao meu ventre. Levo em mim a morada primeira de meu povo. Sou guardiã da
oca ancestral. Mas não sou só. Sou com elas. Estou entre iguais. Qualquer das
gentes que eu aviste nesta egrégora sabe da poderosa loucura que é sangrar entre
as pernas. São estas as loucas do riacho: as mulheres nascentes. Somos confraria
mesmo quando não lembramos ser. Com elas estou. Daqui, sigo a sangrar.
terça-feira, 3 de janeiro de 2017
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