quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

IMBIGO


Meu povo, filho da água doce, me trouxe pra nascer cá na beira do mar. Vó materna, rezadeira ligeira, guardou imbigo meu que me deu preu mesma plantá quando um ano eu tinha e se quer atinava falar. Era sertão brabo de sol a pino e lonjura muita onde eu-menina semeei minha sina de ser retorno, ser estrada presse chão de agruras, ser caminho pressa terra das barrigudas, ser volta de rio, nascente de mar.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Oração ao Amor


Não queira que eu vire cansaço nos dias da mulher que amo. Talvez eu seja mesmo ser que demande paciência. Talvez todo ser o seja. Não há qualquer problema no descompasso dos encontros. Equilíbrio é dança com ares de improviso ao som do mesmo disco. Me assusta é ser enfado nos dias dela. Livrai-me do fardo de ser peso e do peso de ser piso. Deixa-me ser terra. Não deixeis que eu me deixe ser suportável apenas. Antes disto, morra ao acaso, sem me dar respostas quaisquer. Já não sou capaz de vê-la refutar o dito que ainda não tenha dito. Meu pensamento se dá em círculos. É lento o meu tempo. E mundo pede pressa. Mais que meu silêncio, me dói acreditar nos pedidos de que eu não me permita calada e ser tomada de assalto pela impaciência de quem pensa que se dispõe a minha ladainha. Dai-me sabedoria para que eu não mais refaça o nó atado na garganta. Impor-me não é possibilidade. E se anular-me se fizer um risco, desapareça, amor, sem deixar qualquer espécie de pistas. Salve-se de mim e daquilo que não sei de ti.

sábado, 29 de abril de 2017


Palavras me escapam. Resta corpo reverberando gozo e cuidado. Meu olhar sob feitiço e sobro sem entender o que tenho vivido: inteiramente entregue à urgência e mansidão desse querer. Me lambuzo da paixão que somos para o mundo agora. Mergulho, transbordo e encharcada respingo naqueles que resvalo pelo caminho. 


...amor é milagre.

terça-feira, 4 de abril de 2017

A Ciranda das Mulheres Sábias


Havia mulheres por todas as partes, advindas de toda espécie de nascentes. Chegaram convocadas pelo desejo confluente de nossas águas mais profundas. Ainda que não soubessem ser isso que estavam por fazer de si mesmas, chegaram.

Sendo filha da velha senhora, tenho como caminho e missão, desatinar movimento nas águas paradas. Revirar a lama. É que carrego força de lida com todo tipo de poça.

Entregue ao serviço de cuidar-nos: no silêncio, maior parte do tempo; por vezes, na fala que se teimava calma. Noite de estio, a prosa de leito largo tardou para romper em foz. Náuseas no fluir das águas. Mas também um colo quente e sereno. Vida a fluir, truncar, voltar a fluir e voltar a truncar.

No tempo dos corpos, cada uma daquelas que se aproximou do pequeno lago ao centro da ciranda das mulheres sábias depositou em sua margem plantas e tinturas de poder. O barro da velha tornado moringa sagrada ecoou seu canto de fundo de rio ou de mar. Cada uma das mulheres mergulhou até onde seu fôlego pôde lhe carregar. A fundura que, para uma de nós, era água rasa, para outra, era precipício e escuridão. Juntas. E sós.

Uma, que é árvore de raízes profundas, no encontro com o abismo de suas águas mais turvas, receou não reconhecer em noite de lua nova o caminho de volta. Voltou quando desistiu de enxergar e confiou nos pés sabedores da estrada.

Iluminar a intuição é sempre desempoçar as águas sagradas da memória. Tocar esse não lugar assusta e apaixona porque no corpo que narra tempo não há e nem cessa.


Fotografia - Mariana David


quarta-feira, 15 de março de 2017

"de hoje a oito"

Dia dela, corpo ferve; casa aprisiona e sou desejo de rua imunda de gente. Toda quarta-vermelha sou fome desembestada: boca sedenta. Tenho pelos eriçados e mão sinuosa acariciando vulva macia e quente. Semana rasgada ao meio, só resta sentido em me deixar guiar pelos ventos de Oyá. Bicos de peitos. Olhos vidrados. E assim, noite-dia, corre solto riacho que sou entre pernas. É que quarta-feira bate forte feito baque de trovão em mim. Nela, viro assombro: vejo raio e vou me banhar de chuva no mar. Dançar na tempestade. Dançar a tempestade. Ser a tempestade. Fechar os olhos e  ser poder: ser prazer. Gozar junto e deixar ser sem medo qualquer.



(...)
Se assim não for, enlouqueço.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

...ontem.

Estive com o amor:
E ele era moço bonito.

Pranto


Há tanta gente dentro de mim. Sou um povoado para além do agora. E tem sido difícil lidar com as súplicas do povo que me habita. Meu povo chora uma dor antiga e me pede socorro. Povo preto. Povo índio. Povo caboco. Nunca foram tantos os berros de meus ancestrais percorrendo meu sangue, meus ossos, meus órgãos. Sinto o medo de não encontrar caminho para ser colo da minha gente. A cidade me esmaga e me sinto cansada. O pranto que não se faz choro, deixo escoar pelo corpo. Danço a tristeza daqueles que agonizam no sonho de que eu os escute e os honre com minha existência. Tenho medo. Mas tenho mais fé do que medo. Sou filha de Nanã e terreiro de Eguns.